Nega Tita desafia o tempo
Baixinha, magra, curvada pelo peso dos anos, Nega Tita, a última das doces figurinhas folclóricas que habitam a Florianópolis dos saudosistas, continua resistindo ao tempo, circulando pelas cercanias do Mercado Público Municipal, onde encontra, diariamente, pessoas com ela identificadas e que lhe estendem a mão. Há muito abandonou o burburinho do Senadinho para não ser atropelada pelo caminhar da cidade apressada, e da mesma forma os bancos da praça 15, nos quais costumava descansar, bem como conquistar parceiros em sua época namoradeira. A praça da Tita é hoje habitada por gente tão esquisita quanto estranha, que não repassa segurança a dócil negrinha.
Os anos alteraram substancialmente os hábitos e o comportamento dela. Em seu tempo de mulher fogosa, de muitos parceiros, demonstrava ser uma pessoa amarga, costumava espinafrar com facilidade e sempre que provocada agredia a quem a hostilizava com um festival de impropérios, daqueles de deixar beata com "calo de altar" nos joelhos ruborizada. Tornava-se agressiva e literalmente malcriada.
Nos dias de hoje, circulando no Largo da Alfândega entre pessoas estranhas ao seu mundo miserável, hostilizada por mendigos que infestam aquele local, Nega Tita procura alguém que a conforte e lhe estenda um donativo. Ao cruzar com um conhecido usa o mesmo gesto de muitos anos, um leve puxão de roupa significa pedir ajuda. Depois que é reconhecida planta-se imóvel, subserviente, esperando que uma moeda desça sobre sua mão, paga com um tímido sorriso.
A intimidade de muitos anos com o entorno do Mercado Público lhe dá a segurança que necessita à sua frágil velhice. Sabe que naquele reduto é reconhecida há gente que a ampara há muitos anos. Há sempre alguém disposto a defendê-la dos abusos e escárnio de bêbados agressivos e infelizes. Ao caminhar pelo Mercado, Tita demonstra felicidade ao ser identificada, cumprimentada, tratada como gente. No local, há sempre alguém disposto a lhe estender a mão. Recebe o calor humano do Beto do Box, o qual a recepciona com um lanche. É também contemplada com o afago do Chiquinho Peixeiro, do Zezinho do bar, com uma graça apimentada do Alvim Spinoza, que há muito conhece o seu passado, com o carinho do Oreste Melo, do Lauro do Ponto 15. Nega Tita é respeitada como merece ser.
No inverno passado, ao passar de carro ao lado do Mercado Público, deparei com Tita encolhida sob a marquise do velho prédio, se protegendo do frio. Estacionei e fui ao seu encontro. Indaguei o que ela fazia ali aquelas horas da noite. Decidi ajudá-la.
- "Roubaro mô dinhero. Comé covô pra casa?", respondeu-me injuriada.
- "E onde tu mora, Tita? "indaguei.
- "No Pasto do Gado." (Jardim Atlântico).
- "Entra no meu carro. Te levo em casa", propus.
- "Ah é! Pra tu me cumê no caminho. Tás tolo! ", reagiu decidida.
ao certo a idade da mulher,
que é conhecida em toda a Ilha
Nega Tita, que enriquece o nosso folclore, aos olhos da população parece não possuir nome próprio. É conhecida e reconhecida apenas como Nega Tita, sem direito a carteira de identidade e CPF. E com certeza não precise mesmo de identificação oficial, pois ela é a cara da própria cidade. Florianopolitanos de todos os recantos da Ilha a conhecem durante pares de anos. Discute-se, com alguma insistência, a idade média da doce negrinha de olhos profundos, tristes e apertados em seu rosto magro, surrado pelo tempo. Seria 60, 70, há quem contabilize que ela tenha ultrapassado os 80 anos de idade.
A discordância sobre a sua idade deve-se ao fato dela ser realmente muito antiga no centro de Florianópolis. Há o registro de de que Nega Tita foi criada por Biloca dos Cachorros, uma pedinte que costumava caminhar pelas ruas da cidade acompanhada por uma dezena de cachorros vagabundos. Sua presença era anunciada pelo latido insistente da matilha. A franzina menina maltrapilha, descalça e costumeiramente com os dedos enfiados na boca, seguia a sua mãe adotiva à distância e já demonstrando problemas mentais.
Como a população a conhece há muitos anos, fica a impressão de que seja tão antiga, creditando a ela quase 90 anos. Porém, em cálculo aproximado, conclui-se que Tita tenha pouco mais do que 60 anos. É remanescente de uma época em que a cidade era habitada por outras doces figurinhas que deixaram muitas saudades, entre elas Marta Rocha, Barga-quatro, Maria Sapurema, Capitoa, Maria do Job etc, todas já falecidas.
A Tita de sorriso tímido e olhos perdidos no mundo é uma mãe de muitos filhos, que a abandonaram mais tarde ao reconhecer o seu passado e sua origem miserável. Apenas o neguinho Fifi, percussionista falecido, fazia, com alguma reserva entre amigos mais íntimos, alusão à ela como sendo sua mãe. Mas nuca teve coragem de lhe dirigir uma palavra de carinho. Outros filhos foram criados pelo Chico Peixeiro, a quem chamavam de pai e estão encaminhados na vida. O seu último romance foi com um homem branco, trabalhador, que ganhava a vida cortando grama nos pomares de bacana.
Era comum encontrar o casal caminhando pelas ruas de Florianópolis. A ele, Tita dedicou fidelidade enquanto estiveram juntos. Ele trabalhava manuseando o tesourão e ela permanecia à distância, o aguardando comportada. Desse romance nasceram filhos brancos saudáveis e que deram encaminhamentos às suas vidas. Mas não a reconhecem como mãe.
Talvez devido às suas faculdades mentais, Tita não guarde nenhum registro do número de filhos que colocou no mundo, e pelo mesmo motivo, rancor por não ser reconhecida, abandonada. No entanto, a doce criatura continua recebendo o carinho de sua gente, valorizada como símbolo folclórico de uma cidade que a admira e a respeita como figura humana. E que a preserva como personagem de um esquete folclórico e costumeiramente comentado, ocorrido sob a figueira do jardim, quando embalava um de seus filhos, e uma beata,que se dirigia à missa na Catedral a abordou:
- "A moça não gostaria de dar esta criança para eu criar?", propôs a mulher docemente.
- "Qués filho é? Vai dá como ô di... ó!", respondeu Nega Tita indignada.
publicação de 1999.
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